COBERTO DE FARRAPO

Espaço para juntar retalhos e vestir personagens de alguns contos.

Rafael chega por volta das 19 horas todos os dias. Da casa para o trabalho. Do trabalho para casa. Á noite, sua esposa, Flávia, prepara o jantar religiosamente. Mesmo que ela esteja doente ou tenha qualquer outro afazer, o jantar está na mesa para o amado marido.


O casal tinha pouco tempo de união. Conheceram-se por meio de um amigo em comum: Vítor. Flávia o considerava como um irmão e por isso não hesitou quando o amigo sugeriu que apresentasse a ela aquele que viria a ser seu marido.


Os dois se apaixonaram de tal forma que parecia que era algo predestinado. Ambos estudavam Comunicação. Assunto não faltava. Um tinha o poder de deixar o outro sem fôlego.


Numa segunda-feira, Rafael voltou para a casa por volta das 15hs. Entrou, largou a pasta e as chaves do carro em cima da mesa. Desfez o nó da gravata com força. Desabotoou a camisa, enquanto tirava os sapatos apertados. Apoiava as mãos sobre a mesa, quando Flávia, surpresa, grita:


─ RAFAEEEEEL????

─ Eu sei. São três horas da tarde.

─ ... – emudece Flávia.

─ Fla, senta aqui – diz Rafael puxando uma das cadeiras da sala.


Flávia com feição de preocupação atende ao pedido do marido. Rafael dá três voltas pelo apartamento, a fim de criar coragem para a revelação que guardava há algum tempo. Resolveu se sentar também. Deu um beijo na testa da mulher.


─ Eu te traí.

─ Hã? - questiona Flávia.

─ Sei que seria hipocrisia dizer que ainda te amo. Mas é a verdade. E também é verdade que me envolvi com outra pessoa.

Rafael vai até a cozinha e pega um copo d’água para a esposa que chora em meio a soluços.

─ Quer o divórcio? – pergunta ela.

─ Meu anjo...

─ Não me chama assim!

─ Desculpa, fui fraco. Fui um imbecil. E isso nos vai custar caro.

─ “Nos”?

─ Sim. Por que acha que estou em casa uma hora dessas?

─ DEUUUUUS! Qual o nome do custo?

─ Tu não queres saber disso...

─ Se essa piriguete faz com que tu fosses demitido, eu quero saber o nome. Anda, fala logo! DE-SEM-BU-CHA.

─ Cristina. Setor de Recursos Humanos.

─ Tá com ela ainda?

─ Claro que não! Eu te amo.

─ Agora que tá fudido e mal pago, diz que me ama.

─ Fla, não fala assim. Preciso de ajuda...

─ É o mínino que merece!!

─ Vai me perdoar?


A esposa traída se levanta e segue em direção ao quarto do casal. Tira algumas roupas do armário e avisa que passará uma semana fora para esfriar a cabeça. Flávia diz que ficará na casa dos pais e que não quer ser incomodada. Ao sair, bate a porta do apartamento com violência sem nem se despedir.


O traidor, perdido, não sabe o que fazer para recuperar a confiança da mulher. Revira todos os contatos: colégio, época da faculdade, primeiros estágios e empregos. Dentre tantos conhecidos, Rafael encontra o número de um amigo publicitário de Vítor. Anotou o telefone num papel separado e prometeu para si mesmo que no dia seguinte ligaria para o tal Miguel, amigo de Vítor.


─ Minha amada flor, teu maridinho deu uma folga? –atende Miguel.

─ Hã? – indaga Rafael.


Reconhecendo a voz masculina, Miguel logo desliga o telefone. Rafael ligara do telefone de casa e por isso o publicitário identificara a chamada no celular. O traidor se sentiu o traído. Nunca desejou estar em nenhuma das posições. Todavia, tudo parecia sair do controle. A traição, a demissão e agora isso.


Flávia voltou para casa. Rafael reparou que a mulher estava renovada, com um ar diferente. Provavelmente o responsável por tudo aquilo era Miguel. Estava perfumada como nunca. Vestia um decote como há tempos não vestia. Deu-lhe um beijo ardente, largando as malas no meio da sala. Rafael não sabia o que fazer, mas aquilo lhe agradava.


O casal seguiu para o quarto. Flavia arrancou a roupa do marido com uma voracidade tamanha, que deixou marcas de unhas por todo o corpo. Na excitação, Rafael até esquecera-se de pedir alguma explicação pelo que ouvira na ligação para Miguel.


Penetrou-a de uma forma apaixonada. Talvez até mais profundamente do que na época da paixão recente, quando tinham acabado de se conhecer. Os dois chegaram ao ápice juntos. Isso nunca tinha acontecido. Nada daquilo tinha acontecido. Rafael simplesmente não conseguia para de elogiar o perfume da esposa. Flavia não parava de elencar qualidades ao desempenho do marido.


Abraçaram-se carinhosamente. Flávia disse que neste tempo, conseguira um trabalho com remuneração semelhante a do marido e que conseguiria arcar com as contas da casa até que ele se restabelecesse. Rafael não questionou a rapidez pela qual a esposa conseguiria uma colocação. Apenas encaixou seu corpo no da mulher em forma de conchinha. Apagou a luz do criado-mudo e adormeceram.

Juliana e Julieta conversavam na pracinha do bairro onde moravam. Julieta, sempre muito falante, mal terminava um assunto e engatava outro. Adorava histórias dramáticas e estava sempre com o pé do ouvido atrás das portas de sua casa e dos avôs.

─ Juju!

─ Fala, Juli.

─ Jujuuuuuuuuuu!!!!

─ Menina, para com isso. Diz o que você quer dizer duma vez.

─ NÓS SOMOS IRMÃS!!!

─ Claro que somos - explica Juliana.

─ ....

─ Vivemos uma na casa da outra, sua mãe se considera como minha mãe e a minha mãe considera você como filha dela. Entendeu?

─ Jujuzinha do meu coração, ‘prest’enção’. Irmãs moram na mesma casa, floooor!

─ Tá me zoando, Julieta??? Que papo é esse??

Antes que Julieta pudesse prosseguir com a sua teoria, o pai de Juliana passa com o carro avisando que a quer em casa dentro no máximo 5 minutos. Como a menina sempre fora obediente, pediu ao pai que parasse o carro, pois aproveitaria a carona. Juliana ofereceu carona à amiga, que recusou.

─ Não somos irmãs, você não é obrigada a me dar carona. Pode ir com teu papaizinho. Vou pra casa caminhando.

─ Poxa, Juli, não tô entendendo essa agora...

Julieta se levanta em sai para o caminho aposto. Precisava colocar as idéias em ordem. Não entendia porque a amiga de anos, a melhor amiga, tinha um pai tão presente e ela não. Sentia um pouco de inveja. Ela só queria se sentir parte de uma família. Uma família que fosse completa.

Após a caminhada, chegou em casa por volta das 19hs. Rita, sua mãe, dificilmente determinava hora para que a filha voltasse para casa. Sabia que tinha criado uma garota ajuizada, que falava pelos cotovelos, porém ajuizada. Julieta nasceu quando Rita ainda estava no Ensino Médio. Deveria ter por volta dos 16 ou 17 anos. Jamais pensara em abortar. Desde o primeiro dia em que soube da gravidez, dizia que teria o bebê mais lindo e falante do mundo.

Logo que Rita se mudou para Campinas, conheceu Vera. Vera era a mão de Juliana e vivia com seu namorado, Lamartine, quando a menina nasceu. O casal se amava, apesar das freqüentes brigas ocasionadas pelo ciúme doentio de Vera. Rita se mudara para a cidade paulista por conta do trabalho de pai, que exigia constantes viagens.

─ Mãe, você acha que eu e a Juju somos parecidas? – questiona Julieta.

─ Parecidas no quê, filha?

─ No nariz e nos olhos. Só que o cabelo dela é liso e o meu cacheado. Aliás...

─ Aliás, a senhorita tem que estudar para prova de biologia. Já pro quarto!

Julieta resolveu então desabafar no seu diário.

“Querido diário, só você me entende. Eu só queria ter um pai. Esses dias eu ouvi a vó dizendo que não agüentava mais guardar um segredo e que logo, logo ia me levar para conhecer Porto Alegre. O pai da Jujuba é gremista. Certo que deve ter alguma coisa a ver. Só não sei por que ela quer me levar para o Rio Grande do Sul se o cara ta aqui. É nosso vizinho!!!!!”

Após o desabafo, a menina começa a estudar para a prova mais importante. Precisava tirar uma boa nota para que a mãe não a cobrasse tanto. De repente, ouve um barulho de discussão vindo da sala. Resolve ir até lá e vê Vera chorando aos prantos.

─ Dona Vera, aconteceu alguma coisa com a Ju? – questiona Julieta.

─ Ai, querida, volta pro teu quarto. Isso é conversa de adulto.

─ Mas Dona Vera...

─ Rita, diz alguma coisa pra essa menina. Ela não tem que ouvir essas safadezas.

─ Filha, por favor... – diz Rita.

Julieta volta para o quarto e deixa a porta entreaberta.

─ Ai, Rita, eu sabia que ele era um cachorro. Já tinham me avisado que ele não era boa coisa. – desabafa Vera.

─ Tá, mas o Lamartine é um homem tão bom. Super dedicado à menina.

─ O Lamartine é ótimo!

─ ...

─ É o pai verdadeiro da Juliana, Rita! Tá me extorquindo. Quer que eu pague uma pensão pra ele. Eu agüento isso?? Se eu não pagar, disso que vai tentar tirar ela de mim.

─ Mas quem é esse infame?

─ Lembra que fui passar umas férias lá na sua cidade?

─ Lembro sim. Não me diga que...que..que...o safado é de lá?

─ ...

─ Mas tu também hein? E o Lamartine já sabe disso?

─ Nem sonha. Fui de férias só com as meninas. Aconteceu. Apaixonei-me, me deixei envolver pelo cretino. Quando voltei e fiquei sabendo que estava grávida, o Lamartine já escolheu o nome e ainda cantava aquela música...aquela...Jou Jou Balangandans. Sempre que a Ju tá triste, ele começa a cantarolar. Desde criança. Sempre foi assim.

A filha de Rita, muito esperta, encontrou a peça que faltava para fechar seu quebra-cabeça. A avó falara em Porto Alegre e a mãe de sua melhor amiga também. Ficara tão feliz com a descoberta que se desconcentrou e perdeu o fim da conversa. Só se deu conta quando Rita fechou a porta e a chamou na sala.

Rita chorava e tremia muito.

─ Julieta!

─ Mãe, que foi?

─ Nessa semana de provas, vais ficar na casa dos teus avôs.

─ Por quê?

─ Guria, não discute! NÃO DISCUTE. Vai arrumar tuas coisas. Eu vou viajar. Na ida pro aeroporto, te deixo na casa do pai e da mãe.

─ Mas, mãe...

─ Juli, tu sempre me obedeceste. Não vai dificultar agora.

Na chegada a Porto Alegre, Rita segue do aeroporto direto ao hotel. Lá, procurava de todas as formas onde poderia estar morando Daniel. Sabia que ele não tinha saído da cidade, mas não fazia idéia de que bairro ele estaria. Depois de tantos anos, encontrou seu perfil numa rede de relacionamentos da internet. Não se surpreendeu ao ver que ele continua morando na casa dos pais.

Rita alugara um carro para se locomover com mais facilidade. Foi até a zona sul da cidade, onde se conheceram e que Daniel morava. Lembrava direitinho do caminho. A cidade tinha mudado muito naquela região. Supermercado e até shopping novo. Seguiu o carro recordando que havia sido feliz naquele lugar. Sentia saudade do pôr-do-sol do Guaíba. Sentia saudade de ir aos jogos no Beira-Rio. Sentia saudade até do Fogaça.

─ Quem é?

─ Daniel, sou eu, a Rita. Abre a porta.

─ Rita?! O que tu tá fazendo aqui? – indagou Daniel.

─ Me deixa entrar. Tenho um assunto importante pra tratar contigo.

Rita contou-lhe sobre a filha. Disse que a mudança para Campinas fora tão súbita que resolveu omitir a gravidez. Sabia que Daniel era mulherengo e envolvia-se com diferentes pessoas. Mostrou-lhe várias fotos de Juliana e Julieta juntas.

─ Tu pariu umas gurias tão belas.

─ Idiota, a da direita é a Julieta, a MINHA filha.

─ E a outra?

─ A outra é a Juliana, filha da Vera.

─ Co-nhe-ce a Ve-ra? – guaguejou Daniel.

─ Tu ainda tem alguma dúvida?

─ Trouxe as fotos das gurias pra tu ver e se contentar com isso.

─ Quer dizer então que eu tenho duas filhotas? – disse Daniel com os olhos lacrimejantes.

─ Tu tens é duas...duas...duas sei lá o quê. Tu não tens nada. Não filha nenhuma e nem caráter. Vou te mandar um dinheiro pra tu parar de incomodar. As gurias tão muito bem sem ti!

Dias depois, toca o telefone na casa de Rita.

─ Alô! – atende Julieta.

─ A Rita está? – diz a voz.

─ Está sim. – responde Julieta, enquanto chama a mãe.

─ Alô, quem está falando? – pergunta Rita.

─ Olha só, não precisa mais me mandar dinheiro. Arranjei um emprego.

Rita começa a chorar de alívio. Julieta se aproxima da mãe e diz que ela é a melhor mãe do mundo. A menina dá um abraço tão apertado, que as lágrimas agora passam a ser de felicidade. Julieta dá mais um beijo na mão e diz que vai ser arrumar para passar na casa de Juliana.

─ Dona Vera, a Jujuba tá em casa?

─ Ta sim, vai entrando.

─ Juuuuuuujuuuuuuu!!!! – exclama Julieta ao ver a amiga.

─ Qual o motivo de tanta felicidade?

─ Porque você é minha irmã...

Vera esbugalha os olhos ao ouvir à frase de Julieta.

─ De novo essa história? – retruca Juliana.

─ ...a irmã que eu escolhi!

─ Isso foi o que eu sempre te falei, garota! Você é a minha Jou Jou Balangandans, que nem o pai diz!

E as duas sobem para o quarto de Juliana, enquanto Vera continuava os afazeres domésticos.

Renata não se sentia bem fazia alguns dias. Nada tinha mais graça. Nada a fazia rir. Nada parecia mais fazer sentido. Levantou-se para mais um dia árduo de trabalho. Sem grande expectativa de que seu dia poderia ser diferente dos outros, arrumou-se como quem vai levar o lixo para a rua.

Chegando ao trabalho, trombou com Augusto:
─ Bom dia!
─ Pra mim não tem nada de bom!

Augusto nem tentar puxar qualquer outro assunto. Apenas admirou-se com o mau humor da colega. Foi a primeira vez que Renata havia lhe dirigido tamanha estupidez.

─ Tu viu a Renata? – perguntou Augusto.
─ Por quê?
─ Fernando...cara...ela ta muito estranho.
─ Estranha de que jeito?
─ Tchê, sei lá. Tu que é tri amigo dela, vai lá ver o que ta acontecendo e depois vem aqui me contar.

Fernando ainda tinha umas pendências do dia anterior para resolver. Não queria para tudo. Sabia que se fosse falar com Renata, eles acabariam brigando. Sua amiga sempre teve o sangue quente e teimosia. A típica capricorniana. Há poucos meses, os dois tiveram um caso e por isso Fernando conhecia bem o gênio da moça.

Além disso, pensou que pudesse ser algo a ver com futebol. Renata amava assistir a todos os campeonatos. Talvez ela tivesse nervosa pelas últimas partidas do Internacional, seu clube do coração. Mesmo assim, o rapaz não conseguia tirar da cabeça a fala de Augusto para que fosse conversar com ela. Pensou, então, em chamá-la para almoçar. Assim eles poderiam se falar com mais calma.

─ Oi, Renata!
─ Fernando, hoje não tô com saco.
─ ...
─ Sério, fala logo. Desembucha. O que tu tá querendo?
─ Só queria te chamar pra almoçar. Por minha conta. Topa?

Depois de um longo suspiro, Renata resolve aceitar. Os restaurantes da redondeza não eram lá muito baratos e essa seria uma forma de economizar.

A manhã parecia se rastejar. Todos na empresa pareciam meio abatidos. As vendas não iam muito bem no primeiro semestre do ano, mas isso não seria motivo para Renata estar daquele jeito tão estranho. Fernando já nem conseguia mais se concentrar nos negócios. Decidiu que por volta das 11h30, desceria até a sala da amiga para que fossem para o intervalo.

De repente, o seu telefone toca.

─ E aí?
─ E aí o quê?
─ Falou com a guria?
─ Cara, me liga depois do almoço. Tenho que terminar umas coisas aqui...
─ Sério, Fernando, fala logo com ela. Hoje acordei com um mau pressentimento!
─ Guto véio, para com essa palhaçada. Já tô nervoso e tu ainda fica me falando essas baboseiras.
─ Não é baboseira. É uma constatação. Tá, vou para de te encher, mas depois não diz que não te avisei.

Fernando não queria admitir, mas estava tão ansioso quanto o colega. Logo que o relógio da sala marcou 11h27, o amigo de Renata desceu as escadas o mais rápido que suas pernas permitiam. Quando chegaram ao restaurante, Fernando tentou quebrar a tensão do momento.

─ Viu, não liga!
─ Não ligar para o quê?
─ O Inter vai ganhar do Corinthians.
─ Sim, e agora além de analista de marketing tu também viraste vidente.
─ Calma!
─ Tô calma.

Renata começa a ter uma crise de choro. Os clientes nas mesas próximas começaram a lançar olhares de condenação a Fernando.

─ Cretino, o que tu fez pra ela? – disse uma velhinha.
─ Porra, não te mete, velha chata! – respondeu Renata.

Os amigos largaram o valor em dinheiro suficiente para pagar a conta e pensaram que dar umas voltas para conversar seria uma boa idéia. Os dois entraram em silêncio no carro de Fernando. Renata colocou um cd do Kleiton & Kledir. Sua música preferida era Paixão. A jovem programou no repeat.

─ Que letra linda! – exclamou Fernando.
─ Demais, não é?
─ Rê?
─ Quê?
─ Me conta o que tá acontecendo...

Renata deu um beijo próximo aos lábios de Fernando. Surpreso, Fernando entrou numa rua deserta e estacionou. Começaram a se beijar carinhosamente. Foram para o banco traseiro do veículo e Renata percebeu a empolgação do amigo. Amaram-se. Amaram-se loucamente. Amaram-se como nunca o tinham feito mesmo quando mantinham um caso secreto, pois era contra as normas da empresa.

Na volta do almoço, cada um foi para sua respectiva sala. Augusto, mais atento à movimentação das pessoas do que aos seus afazeres, vai até a sala do amigo.

─ E aí?
─ De novo, cara. Muda a pergunta, toda vez que tu vem falar comigo é isso agora! VAZA! – esbraveja Fernando.

No dia seguinte, Renata não foi trabalhar. Fernando, naquele dia, passaria todo o expediente tratando negociações com clientes e só foi informado da ausência no happy hour.

─ Putz, tenho que ligar pra Renata!
─ Isso, liga pra gente saber o que aconteceu...
─ Augusto, tu é foda cara, só quer fofocar!

Fernando, ao invés de ligar, decide ir até o apartamento de Renata. Como tinha a chave e ela não atendia à porta, achou que não seria imprudente. Adentrou chamando pela amiga. Ouviu o chuveiro ligado e dirigiu-se ao banheiro. Chamou mais uma vez por Renata. Não obteve resposta alguma.

Assustado, arrombou a porta. Encontrou Renata no chão, sentada e desacordada. Bateu no seu rosto, na tentativa de que recobrasse a consciência. Voltou à sala e chamou uma ambulância. Ao lado do telefone, encontrou um bilhete:

“Não quero ficar na tua vida
Como uma paixão mal resolvida
Dessas que a gente tem ciúme
E se encharca de perfume
Faz que tenta se matar...”

Eu nunca imaginei que um dia isso pudesse acontecer. Não que eu seja uma daquelas pessoas que acha que nunca nada de ruim vai me acontecer. Mas é que um dia eu andava num lugar que achava seguro. Claro que era um espaço que algumas vezes tinha seus desníveis. Simplesmente porque isso é absolutamente normal.


Só que um dia, nesse exato lugar, eu acabei tropicando. Um dos meus lugares favoritos tinha me feito tropicar. Desequilibrei-me de tal forma que uns objetos caíram por cima e levantar a poeira do chão. O mais engraçado é que eu não tinha percebido que ela poeira estava ali. Nos últimos meses, eu passara por ali como se nada diferente tivesse acontecido.


Comecei a espirrar. Mesmo assim, eu insistia em achar que tava tudo e dizia a mim mesma que aquilo não iria me incomodar. Que nada! Virei a noite pensando que eu devia dar um jeito naquele lugar, antes que ele me consumisse. Antes que tudo aquilo virasse uma bagunça muito maior e me afetasse muito mais.

Só que simplesmente eu não conseguia encarar aquela situação. Aqueles objetos caídos, misturados com a poeira e arranhados devido à repentina batida no chão, me fizeram começar a achar aquele lugar não mais tão especial.


“Como foi que apareceu aquele desnível?”. Era só nisso que eu pensava. No princípio, achava que alguém tivesse o colocado de propósito. Porém, eu já não me fazia presente ali há algum tempo. Aquilo deve ter se criado sozinho!


As conseqüências do tropeço? Dor. Muita dor. Tristeza. Chateação. E o irônico é que não era só comigo. Outras pessoas acreditavam na segurança e nas qualidades daquele mesmo lugar. Todos, inclusive eu, começaram a ‘pegar implicância’. Não sei se um dia voltarei a pisar naquele recinto como eu fazia há alguns dias. Vai ser difícil. Os outros diziam o mesmo. Eu vou esperar. Vou esperar se a poeira baixa. Vou esperar para ver se os objetos, mesmo arranhados, vão se ajeitando.


Nada vai ser do mesmo jeito. Nunca volta a ser quando algo é arranhado. Quando alguém é ferido. Quando o sentimento de apreço começa a terminar. É difícil, mas eu tenho outros portos seguros que me prometeram que não irão desnivelar. Pelo menos não de forma tão grave quanto este desnivelou.

Para abrir as postagens com os contos, escolho um que é resultado de uma atividade sugerida em sala de aula pelo meu professor de Escrita Criativa. A tarefa consista no seguinte: a partir de uma sequência de frases, deveríamos criar uma história, juntando todos os "farrapos". A ideia era instigar nossa criatividade a partir de retalhos que aparentemente não poderiam se unir.

Colocarei as frases na ordem sugerida em sala de aula para que vocês também possam se aventurar na brincadeira. (Importante: a ordem não pode ser alterada, senão perde a graça!)

1. Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro.
2. Cedo ela teve uma intuição.
3. O cão revelou-se indigno de sua raça.
4. Acabaram a noite sem muitas surpresas.
5. A TV transmitia o jogo.
6. O presidente da República baixou um decreto criando uma nova condecoração.

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Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu uma suspiro. Sua esposa se aproximou para entender o que acontecia. Cedo ela teve uma intuição. O marido logo pensou que o barulho pudesse ter alguma relação com a mulher sensitiva.

Alberto resolveu, então, abrir vagarosamente a porta principal da casa. Com o estranho ruído da fechadura enferrujada, o cão revelou-se indigno de sua raça. O casal chamou pelo cão diversas vezes e ele continuava encolhido em sua casinha. Assim, acabaram a noite sem muitas supresas.

Entraram novamente dentro da casa. A TV transimitia o jogo. Era o único ruído naquele momento. A mulher lavava a louça. De repente, Alberto dá o mesmo suspiro de antes, na interrupção súbita da partida de futebol: o presidente da República baixou um decreto criando uma nova condecoração.




Foto: Divulgação

O nascimento deste blog tem como objeto colocar no papel algumas histórias que passam pela minha cabeça. O Coberto de Farrapo é uma tentativa de mergulhar na criação literária e experimentar o gostinho de criar e vestir personagens juntando uma peça aqui e outra ali. O nome é inspirado numa frase da canção de Noel Rosa*, 'Com que roupa?'.

Tomara que vocês curtam o que vem por aí e juntem seus farrapos com os meus.

Clique para ver o vídeo da música na voz de Noel e na de Roberta Sá.

*Clique para ler a letra da música.