COBERTO DE FARRAPO

Espaço para juntar retalhos e vestir personagens de alguns contos.

Era um dia frio do rígido inverno gaúcho. Devia ser por volta das cinco da tarde quando Luis saiu para comprar algo que o realmente deixasse bem alimentado. Entrou no supermercado com o nariz vermelho pelo frio. Esfregava as mãos uma na outra antes de retirar as luvas. Logo depois, pegou um cestinho, já que um carrinho seria muito grande para suas compras básicas da semana.


Dirigiu-se até o corredor das massas. Uma bela macarronada cairia bem numa noite de sábado. Não hesitou pensando na quantidade de carboidratos. Estava em plena forma e vigor. Nenhuma de suas namoradas jamais reclamara do seu fôlego e pique. Aproveitou e pegou o extrato de tomate, o queijo ralado. Voltou à seção de frutíferos para pegar uma salsinha. Pronto. O restante dos ingredientes já tinha em casa devido à compra da semana anterior.


Faltava o toque especial: um belo e bom vinho. Luis seguiu ao corredor das bebidas alcoólicas. Lá, não encontrou uma variada carta vinícola. Encontrou sua mais recente paixão. Aquela que faz qualquer um ‘tremer na base’. Isso não seria nada se a bela Amanda não estivesse acompanha do namorado.


Enquanto o casal era observado escolhendo o vinho ideal para uma noite romântica, Luis se deprimia. A idéia de passar a noite na cozinha preparando uma refeição para si perdera a graça. Seu coração não queria apenas ser aquecido por uma taça de vinho. Seu coração desejava uma mulher saboreando um delicioso vinho tinto enquanto se deixava seduzir por tolices ao pé do ouvido.


O jovem apaixonado simplesmente parou em frente à gôndola das bebidas e ali permaneceu. Seus olhos não conseguiam desviar da beleza de Amanda. Nem a movimentação típica de um sábado à tarde desviava sua atenção. Ele só queria uma oportunidade para convidá-la a uma noite regada a vinho e, quem sabe, alguma brincadeira de adulto.


De repente, Luis sentiu um vento passando por ele. Era sua amada cumprimentando e desejando-o um bom final de semana. Ela tinha um olhar sedutor que encantava qualquer homem. Enquanto o namorado terminava de fazer as compras do mês, Amanda jogava conversa fora com Luis. Conversavam sobre o trabalho, a faculdade, a família e os amigos. O coração de Luis batia tão forte que o homem até transpirava de calor.


Amanda, ótima observadora desde criança, dava ainda mais abertura para um convite de Luis. Ela comentava enfaticamente que o namorado teria que viajar nos próximos dias e que ela teria que passar a semana cozinhando macarronada sozinha. Luis então se sentiu à vontade em chamá-la para sua casa.


No exato instante, o tal namorado reaparece como quem surge das cinzas. Amanda, exemplarmente atenciosa, apresenta os rapazes. O namorado de Amanda sugere que o jovem vá visitar o casal e pede que Amanda escreva seu telefone e endereço num papel. Nada poderia ser mais fácil e perfeito. Luis guardou o papel como se fosse sua própria vida.


À noite, Luis, numa excitação inenarrável, prepara sua bela macarronada e degustando um delicioso vinho francês. Enquanto se recordava das curvas de Amanda, recordou-se também do papel com o telefone e endereço. Para sua surpresa, ao abrir o papel, não havia nada escrito. Nada. Nenhum um rabisco. A Luis restou apenas ficar na lembrança do perfume e beleza de sua amada. Enquanto isso, o jovem rabiscava no papel de Amanda, sua canção favorita de Roberto Carlos:

“Se os dois souberem
Nem mesmo sei o que eles vão pensar de mim
Eu sei que vou sofrer mas tenho que esquecer
O que é dos outros não se deve ter”

CONTO PARA COMEÇAR BEM O 'ANO NOVO'*


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Saí daquele lugar que eu não reconhecia mais. Ele apresenta desníveis que realmente me perturbavam. Pensei em desistir. Ir embora dali sem pensar duas vezes. Porém, parecia que algo me chamava. Uma energia que me fazia pensar em todos os bons momentos que eu tinha passado ali. Bem naquele lugar!


Enquanto ia embora, senti um arrepio. Um arrepio daqueles que parecia que Deus ou seja lá os outros nomes que as pessoas O chamem. Ele me tocou. Fez-me pensar mais uma vez. Resolvi colocar o pé que já estava fora para dentro daquele recinto. Eu não podia ir embora sem entender o que tinha ocasionado tais desnivelamentos.


Sentei-me para ouvir os ruídos e sentir as vibrações. Por dentre algumas frestas, eu assista á luz brilhando. Não tão forte como antigamente, mas brilhava. Deixei de pensar que tais desníveis eram inerentes apenas ao ambiente em que me encontrava. Ora, quem sabe meus olhares sobre ele tenham sido muito críticos ou talvez eu estivesse com algum tipo de miopia.


Se algum defeito havia aparecido ali, talvez o lugar não fosse o único culpado. O vento, o clima, as tempestades, o sol. Muita coisa que eu não poderia controlar deve ter acontecido por ele e afetado sua estrutura. Entendi que todo o desnivelamento é conseqüência do tempo. Do tempo bom e do tempo ruim.


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*24 de julho, aniversário da blogueira!

Beatriz saiu do salão de beleza, próximo ao seu escritório, balançando as mãos a fim de que suas unhas vermelhas, recém-feitas, secassem mais rapidamente. Seguia em passos acelerados ao carro do namorado, quando foi abordada por um garotinho em roupas esfarrapadas e aparência suja.

─ Moça, tem um trocado? – pergunta o menino.

─ Putz, to meio apressada. Agora não tenho nada não!

A jovem entra rapidamente no carro de Marcel. Cumprimenta-o com um singelo beijo no canto de sua boca. O rapaz arranca em alta velocidade antes que o semáforo voltasse a fechar. O casal conversa banalidades no caminho até a casa de Beatriz. Marcel, como um bom cavalheiro, elogia as unhas da namorada e repara no novo corte de cabelo.

─ Acho que vou te trancar em casa! – diz Marcel.

─ Por quê?

─ Bia, você tá sempre tão linda e cheirosa!

Beatriz sorri, agradece os elogios e se despede do rapaz com um longo beijo. Abre os portões da casa onde mora com os pais e segue para seu quarto. Liga o rádio na estação preferida e cantarola junto com o som. Enquanto separa seu pijama para tomar banho, recorda-se do menino da saída do salão de beleza.

No dia seguinte, a jovem acorda atrasada para o trabalho. Arruma-se rapidamente e nem toma café da manhã, como de praxe. Sai acelerada para pegar o ônibus que já se encontrava na parada próxima a sua casa. Após o dia turbulento ─ e sem tempo para alimentar-se corretamente ─, Beatriz sai do trabalho e tem um súbito mal-estar. O garoto do dia anterior não hesita em ajudá-la.

─ Moça, cê tá bem? – pergunta o menino com ar de preocupação.

─ Tô, tô, tô sim...

─ Certeza? – insiste o garoto.

─ Cert...

A garota nem consegue responder. Imediatamente desmaia, perdendo completamente os sentidos. Instantaneamente se inicia uma aglomeração em torno de Beatriz. Um homem vestindo terno e gravata se aproxima da multidão. Minutos após a chegada do estranho, a namorada de Marcel passa a recobrar a consciência. Acorda assustada e perguntando pelos seus pertences.

A multidão aos poucos se afasta e ninguém explica o que aconteceu com seus bens. Após o episódio, Beatriz nunca mais vira o menino. Suspeitava de que ele fosse o pequeno ladrãozinho. Perguntava-se quem mais poderia ter surrupiado seus documentos e relatórios da empresa.

Dois meses depois, Beatriz é demitida. Não era capaz de acreditar que tantas coisas ruins pudessem, num curto espaço de tempo, acontecer a uma pessoa só. Resolve então caminhar para espairecer. No trajeto, avista o menino, agora bem vestido e com as bochechas avermelhadas exalando saúde.

Num súbito extinto de vingança, atravessa a rua correndo. Aborda o menino, ofendendo-o de todos os palavrões que aprendera na vida. Surpreso com o vocabulário da jovem, o garoto começa a soluçar.

─ Moça, num to entendendo porque cê tá dizendo essas coisas aí pa eu...

─ Ora bolas moleque, você roubou todas as minhas coisas, na maior cara de pau!

─ Moça, com todo o respeito. Se eu quisesse te roubar, não teria te pedido um trocado, moça. Aquele dia eu ajudei a senhora que tava caindo que nem taquara podre no chão. Aí vem um moço bonito dizendo que era seu amigo e pegando suas coisas. O povo começou a se espaiar de novo quando o cara disse que ia buscar ajuda e já voltava. Tu acordou e eu peguei meu rumo. Umas horas depois, o moço arrumado veio falar comigo de novo, me oferecendo um monte de coisa legal se eu não falasse com ninguém o que tinha acontecido. Moça, ele deu até emprego pro meu pai. Bacana, né???

Beatriz ficou estarrecida. Perguntou ao garoto o nome da empresa na qual o pai estava trabalhando. Não teve dúvidas. Seu maior concorrente havia lhe dado o maior e mais sutil dos golpes. Ela não suspeitava da importância dos relatórios que carregava diariamente. Afinal, seus chefes nunca lhe davam muitas explicações.

Voltou para casa chorando de raiva. Justamente porque se dedicava tanto ao trabalho, desmaiou numa das avenidas mais movimentadas da cidade e aos olhos da concorrência. Caiu diante daqueles que a admiravam, daqueles que a invejavam e daqueles que muito mais que pedir ajuda, queriam estender a mão.

Ela sempre ouvia da mãe que deveria fazer um bom casamento. O pai tinha falecido quando ainda era criança. Pouco se recordava dele. Além das fotos, Antônia só sabia que seu que ele era um amante da boêmia. Não entendia como sua mãe, tão religiosa, poderia ter se rendido aos encantos de Manoel.

Luíza, quando jovem, vivia fazendo promessas ao santo casamenteiro. Sempre rezara a Santo Antônio por um marido de posses. Um marido que lhe desse toda a segurança que ela sempre acreditou que uma mulher necessitasse. Casa luxuosa, empregados por todos os aposentos, lindas jóias, roupas de grife, sapatos caros, eventos sociais importantes e amigos tão ricos ou mais.

O casal se conheceu numa igreja. Manoel estava atordoado, pois sua irmã caçula sofria de um câncer. Seu estado era terminal. Ele nunca fora muito religioso. Dentre seus vinte e poucos anos, aquela talvez tenha sido a primeira vez que entrava em tal lugar com o coração verdadeiramente aberto para Deus e sem pedir algo que fosse para si próprio.

Ele se sentou bem ao lado de Luíza, que fazia suas rotineiras orações para o santo ao qual era devota. Mesmo assim, não teve como não notar a beleza e o desespero pelo qual passava aquele que viria a ser seu futuro marido. Manoel, ainda soluçando e sem perder seus trejeitos de galanteador, perguntou à Luíza o que uma moça tão bela fazia ali. Apesar da óbvia reposta, ela titubeou e saiu correndo em direção à porta.

Enquanto descia a escada com o coração em disparada, tropeçou num galho derrubado devido à forte chuva do dia anterior. Manoel prontamente se dirigiu até a jovem e a ofereceu ajuda. Foi o momento crucial para que a bela garota, que tanto recorria a Santo Antônio, agradecesse aos céus. Ela não teve dúvidas de aquele viria a ser homem pelo qual se apaixonaria perdidamente. Ele era exatamente como sempre desejara: era filho de um influente político da cidade e freqüentava as festas da alta sociedade.

A paixão, o amor, a aprovação das famílias e, enfim, a festa de casamento. Tudo conforme Luíza sempre pensou. Seu sorriso era tão radiante que poderia iluminar a mansão em que viveria por semanas. Enquanto atendia os convidados e recebia as congratulações pela nova fase da vida, notou que há algum tempo não via seu esposo. Caminhou pelo jardim enfeitado por rosas brancas e vermelhas a sua procura. Nada. Andou mais um pouco, pensando onde o jovem poderia estar. Logo adiante avista uma peça de roupa. Era a gravata de Manoel. Aproximou o acessório do nariz para verificar se era mesmo o cheiro de seu amado. Luíza sentiu o cheiro do amado, do álcool e do perfume que as mulheres tidas como de pouco respeito utilizavam.

Seu coração disparou exatamente como no dia em que conhecera Manoel. Ela não poderia acreditar naquilo. Não no dia do seu casamento. Luíza então seguiu. Recompôs-se. Com passos firmes, seguiu adiante e viu Manoel deitado debaixo de uma árvore. Estava todo sujo e chorava. Pedia desculpas à esposa e soluçava. Ela o questionava sobre o que acontecia e ele simplesmente se calou.

Luíza o ajudou a se levantar. Podia sentir o bafo de álcool do marido. Irritada batia no rosto do amado a fim de que ele recobrasse os sentidos. Aos poucos, o jovem retomando a consciência. Pegou seu terno que estava no chão, limpou o excesso do barro com as próprias mãos e se vestiu. Tomou a gravata das mãos da mulher e andou até o lago para lavar o rosto. Luíza acompanhava a cena com os olhos cheios de lágrimas, mas resistia. Não poderia fraquejar. Não naquele momento. Não poderia entregar os pontos.

Dias após a festa, o casal parecia viver bem. Luíza ignorava o acontecido na festa. Manoel fazia o mesmo. Luíza continuava a rezar. Manoel continuava a beber. Luíza fazia compras. Manoel pagava as contas. Os fogos da paixão viravam faíscas. Até o dia em que a jovem comunicou ao esposo que carregava um bebê no ventre. Ela escolheu o nome. Manoel a questionou, dizendo que a mulher deveria parar com tanta religiosidade. Ele não suportava mais. Passou a dormir num quarto separado da casa, sonhando com os belos dias de romance antes de assumir um casamento.

Quando a menina nasceu, ambos se encheram de alegria. Parecia que Antônia viria para que o casal tivesse novamente oportunidade de ser feliz. A garota era esperta. Queria saber sobre tudo. Tinha as feições da mãe e a personalidade do pai. Luíza, ainda quando a pequena tinha por volta dos três anos, já rezava para que a filha encontrasse um bom rapaz, que além de rico, amasse-a verdadeiramente.

Certo dia, Antônia pegou um copo que seu pai havia deixado sobre a mesa. Apesar do forte cheiro, a menina começou a bebericar o resto de vodca que Manoel tinha deixado. Luíza encontrou a pequena vermelha de tanto chorar e com dificuldades para respirar. O gosto amargo e forte da bebida fez a criança se sentir sufocada.

Quando Manoel chegou a casa e viu o bilhete de Luíza avisando que ela e a filha estavam no hospital, tomou mais uns goles de sua bebida preferida e foi às ruas atrás da família. Tonto e perdido, Manoel se recordava dos dias felizes em que ainda tinha poder sobre o álcool e dava atenção à Luíza. Arrependia-se por não conseguir ser um marido e pai melhor. Andou, andou e andou. Na entrada do hospital, encontrou um velho amigo ─ que Luíza havia chamado para que a levasse ao pronto-socorro ─ e pediu que ele cuidasse de Antônia caso um dia ele não o pudesse fazer. Rodolfo disse que isso não seria necessário e que o próprio Manoel era um ótimo pai por dar tudo que uma criança precisa para viver.

Manoel colocou a mão no peito do amigo e depois no seu próprio. Queixou-se de uma forte dor no coração e na barriga. Rodolfo gritou por socorro. Manoel permaneceu no hospital por vários dias. Luíza levava a filha para visitar o pai todos os dias. Entrava no quarto, deixava Antônia e ia para a capela rezar.

Naqueles dias Manoel deu todo o carinho possível para a pequena. Rodolfo também fazia visitas regularmente. Antônia, nas horas que o pai necessitava repousar e a mãe permanecia a rezar, era distraída pelo velho amigo de Manoel. A identificação de ambos era admirável.

O falecimento ocorreu numa madrugada fria de maio. Rodolfo ofereceu todo o apoio, mas a viúva o recusou. Ela já não gostava muito da sua amizade com o falecido e muito menos de seu contato com a pequena Antônia. Mesmo sabendo do pedido de Manoel para que o amigo cuidasse da menina na sua ausência, Luíza passou a ignorar Rodolfo.

Os anos foram passando e Antônia tinha boas recordações do amigo do pai, porém perdera o contato. Ela o via na escola ─ ele dava aulas de Filosofia ─, mas apenas o cumprimentava rapidamente com medo de que a mãe suspeitasse de alguma coisa.

No entanto, de longe, Rodolfo acompanhava o crescimento de Antônia. Por seus colegas de trabalho, sabia que era uma excelente aluna e que arranjaria o homem que desejasse. Ele também sabia das dificuldades financeiras que passava com a mãe. Conseguiu uma bolsa de estudos para a jovem por debaixo dos panos. Ninguém jamais poderia saber.

E Luíza teve suas preces atendidas. Antônia estudou e se transformou numa linda mulher a ser despertar o interesse dos melhores partidos. Rodolfo, por intermédio de uma senhora que conhecia a filha de seu amigo desde criança, apresentou à Antônia um homem de posses e que há algum tempo já observava os passos da jovem. Milton se apaixonou por Antônia. Ele a amava incondicionalmente. Fazia tudo por ela. Exatamente como Luíza sonhava. Milton amava Antônia.

Os jovens se casaram numa linda cerimônia. Milton a cobria de riquezas e de um estranho amor. Mas Luíza parecia estar mais feliz que a recém-casada. Antônia sorria em agradecimento aos mimos. Ele passou a permitir saídas da esposa somente acompanha. Tinha medo que alguém roubasse suas jóias durante os passeios pelas ruas tão perigosas. Enquanto isso, a mãe aproveitava. Antônia se sentia sufocada. A viúva voltava a ter a vida que tinha quando se uniu a Manoel. E Antônia tinha a vida pedida ao santo casamenteiro: união com um homem de posses e que a amava. Só que ele a amava demais...

Primeiro veio a alegria.

O dia amanhecia ensolarado.

No céu, nenhuma nuvem.

A cada hora, os raios do sol aqueciam ainda mais.

As pessoas saiam às ruas exalando saúde.

As crianças corriam de um lado para o outro sem perder o fôlego.

Mesmo assim, alguns teimavam a desconfiar de que algo estava errado.

O calor aumentou.

Subiu um.

Dois.

Cinco.

Dez graus.

A sensação passou a ser de sufocação.

O tempo abafado causou mal-estar.

Três.

Quatro.

Seis.

Onze corpos caídos ao chão.

O clima ficara insuportável.

Onze corpos com as forças perdidas.

O tempo fechou.

O brilho do sol deu lugar às nuvens escuras e carregadas.

Veio a tormenta.

Destruição.

Caos.

Desconfiança.

Como toda aquela alegria poderia desaparecer assim?

A chuva e a ventania pareciam não querer se afastar.

Alguém gritou: Yo no creo em las brujas, pero que las hay, las hay!

Um dos onze corpos caídos conseguia se manter em pé.

Aos poucos foi transmitindo sua energia aos demais.

Encarou todas las brujas de frente.

Os seguidores do mais forte também se levantaram e viram as nuvens indo embora. Encheram-se de esperança.

O cinza passou a dar lugar a tons amarelados e avermelhados.

Os onze corpos se sentiam fortes novamente.

Nada poderia interromper os seus objetivos novamente.

Não de forma tão brusca como havia acabado de ser.

O sol voltava a tocar as águas serenamente.

A alegria retornava como no princípio.

E Deus se fazia presente naquela avenida na beira do rio.


Porto Alegre, 28 de junho de 2009*.


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No aeroporto, eles se despediram fogosamente sob os olhares críticos dos passageiros que aguardavam a chamada para o embarque. Emílio, um pouco constrangido pelos beijos de Ana, pede que a jovem se acalme.

─ Aninha, tá todo mundo olhando...
─ Ai, to nem aí...Vou morrer de saudade de ti!
─ Eu também... – devolve Emílio.

Aninha embarca sorridente. Apesar da saudade, sabia que o período que ficaria fora para trabalhar passaria rápido. E já que Emílio disse que também ficaria com saudade, achou que quando, no retorno, finalmente ele a pediria em namoro.

Os segundos demoravam mais a passar quando a data da volta se aproximava. A jovem mal esperava a surpresa que a aguardava. Sentada na sala de embarque, planejava tudo que faria na sua chegada. Queria sair com Emílio e matar o fogo reprimido durante sua viagem. Ela queria chegar, beijá-lo loucamente, tirar toda a sua roupa. Mesmo que tivesse que arrastá-lo para o sanitário feminino e matar todas as solteiras de inveja.

Na chegada, Aninha foi recepcionada pelos pais. Não conseguira segurar o choro, afinal era a primeira que vez que passava mais de um mês fora de casa durante seus 21 anos. Aproveitou o dia para matar a saudade da família, mas não deixava de olhar para seu celular de 15 em 15 minutos.

Á noite, seu telefone começa a vibrar desesperadamente. Para fazer um charme, Ana deixa tocar uma, duas, quatro vezes.

─ Alô! – diz ela.
─ Aninha, tudo bem? – pergunta Emílio.
─ Tudo. E aí, vamos fazer alguma coisa?

Ana sempre foi do tipo que ia à luta. Não esperava homem nenhum. Apesar das amigas dizerem que esse era seu maior defeito, a jovem aproveitava as oportunidades. Se ela gostava de alguém, não ficava muito tempo nos jogos de sedução. Achava que era perda de tempo.

Combinaram de se encontrar no lugar de sempre. Conversa vai, conversa vem; um chopp aqui e outro acolá, decidiram ir para um lugar mais íntimo. Abriram a porta do quarto do motel e Ana começou a beijar Emílio. Emílio lentamente abria a blusa de Ana. Há muito tempo, ela não se sentia tão bem. O rapaz a tratava com todo o carinho, como se ela fosse a mulher de sua vida. Ana se sentia a mulher mais feliz do mundo. Nada poderia ser mais perfeito que aquele momento.

Semanas depois, a jovem ainda se lembrava com carinho do dia de sua chegada. Perguntava-se diariamente porque Emílio não ligara depois daquela noite. Acreditava que ele deveria trabalhar muito e mal tivesse tempo para dormir. Consolava-se com a idéia de que em breve ele reaparecia com um buquê de flores na mão e pedindo-a em namoro.

Cada hora do seu dia era interminável, a paixão por Emílio não a deixava mais raciocinar. Tentava descobrir o que tinha acontecido. Até que um dia ficou sabendo por amigos em comum que o único homem a quem tinha conseguido se entregar de corpo e alma estava namorando. Após a notícia, Ana sentou ao lado de sua cama e chorou. Chorou de raiva. Chorou de amor. Chorou com medo de seu carinho por ele não virasse ódio. Chorou porque deveria esquecê-lo, mas não o queria fazer.

Rafael chega por volta das 19 horas todos os dias. Da casa para o trabalho. Do trabalho para casa. Á noite, sua esposa, Flávia, prepara o jantar religiosamente. Mesmo que ela esteja doente ou tenha qualquer outro afazer, o jantar está na mesa para o amado marido.


O casal tinha pouco tempo de união. Conheceram-se por meio de um amigo em comum: Vítor. Flávia o considerava como um irmão e por isso não hesitou quando o amigo sugeriu que apresentasse a ela aquele que viria a ser seu marido.


Os dois se apaixonaram de tal forma que parecia que era algo predestinado. Ambos estudavam Comunicação. Assunto não faltava. Um tinha o poder de deixar o outro sem fôlego.


Numa segunda-feira, Rafael voltou para a casa por volta das 15hs. Entrou, largou a pasta e as chaves do carro em cima da mesa. Desfez o nó da gravata com força. Desabotoou a camisa, enquanto tirava os sapatos apertados. Apoiava as mãos sobre a mesa, quando Flávia, surpresa, grita:


─ RAFAEEEEEL????

─ Eu sei. São três horas da tarde.

─ ... – emudece Flávia.

─ Fla, senta aqui – diz Rafael puxando uma das cadeiras da sala.


Flávia com feição de preocupação atende ao pedido do marido. Rafael dá três voltas pelo apartamento, a fim de criar coragem para a revelação que guardava há algum tempo. Resolveu se sentar também. Deu um beijo na testa da mulher.


─ Eu te traí.

─ Hã? - questiona Flávia.

─ Sei que seria hipocrisia dizer que ainda te amo. Mas é a verdade. E também é verdade que me envolvi com outra pessoa.

Rafael vai até a cozinha e pega um copo d’água para a esposa que chora em meio a soluços.

─ Quer o divórcio? – pergunta ela.

─ Meu anjo...

─ Não me chama assim!

─ Desculpa, fui fraco. Fui um imbecil. E isso nos vai custar caro.

─ “Nos”?

─ Sim. Por que acha que estou em casa uma hora dessas?

─ DEUUUUUS! Qual o nome do custo?

─ Tu não queres saber disso...

─ Se essa piriguete faz com que tu fosses demitido, eu quero saber o nome. Anda, fala logo! DE-SEM-BU-CHA.

─ Cristina. Setor de Recursos Humanos.

─ Tá com ela ainda?

─ Claro que não! Eu te amo.

─ Agora que tá fudido e mal pago, diz que me ama.

─ Fla, não fala assim. Preciso de ajuda...

─ É o mínino que merece!!

─ Vai me perdoar?


A esposa traída se levanta e segue em direção ao quarto do casal. Tira algumas roupas do armário e avisa que passará uma semana fora para esfriar a cabeça. Flávia diz que ficará na casa dos pais e que não quer ser incomodada. Ao sair, bate a porta do apartamento com violência sem nem se despedir.


O traidor, perdido, não sabe o que fazer para recuperar a confiança da mulher. Revira todos os contatos: colégio, época da faculdade, primeiros estágios e empregos. Dentre tantos conhecidos, Rafael encontra o número de um amigo publicitário de Vítor. Anotou o telefone num papel separado e prometeu para si mesmo que no dia seguinte ligaria para o tal Miguel, amigo de Vítor.


─ Minha amada flor, teu maridinho deu uma folga? –atende Miguel.

─ Hã? – indaga Rafael.


Reconhecendo a voz masculina, Miguel logo desliga o telefone. Rafael ligara do telefone de casa e por isso o publicitário identificara a chamada no celular. O traidor se sentiu o traído. Nunca desejou estar em nenhuma das posições. Todavia, tudo parecia sair do controle. A traição, a demissão e agora isso.


Flávia voltou para casa. Rafael reparou que a mulher estava renovada, com um ar diferente. Provavelmente o responsável por tudo aquilo era Miguel. Estava perfumada como nunca. Vestia um decote como há tempos não vestia. Deu-lhe um beijo ardente, largando as malas no meio da sala. Rafael não sabia o que fazer, mas aquilo lhe agradava.


O casal seguiu para o quarto. Flavia arrancou a roupa do marido com uma voracidade tamanha, que deixou marcas de unhas por todo o corpo. Na excitação, Rafael até esquecera-se de pedir alguma explicação pelo que ouvira na ligação para Miguel.


Penetrou-a de uma forma apaixonada. Talvez até mais profundamente do que na época da paixão recente, quando tinham acabado de se conhecer. Os dois chegaram ao ápice juntos. Isso nunca tinha acontecido. Nada daquilo tinha acontecido. Rafael simplesmente não conseguia para de elogiar o perfume da esposa. Flavia não parava de elencar qualidades ao desempenho do marido.


Abraçaram-se carinhosamente. Flávia disse que neste tempo, conseguira um trabalho com remuneração semelhante a do marido e que conseguiria arcar com as contas da casa até que ele se restabelecesse. Rafael não questionou a rapidez pela qual a esposa conseguiria uma colocação. Apenas encaixou seu corpo no da mulher em forma de conchinha. Apagou a luz do criado-mudo e adormeceram.

Juliana e Julieta conversavam na pracinha do bairro onde moravam. Julieta, sempre muito falante, mal terminava um assunto e engatava outro. Adorava histórias dramáticas e estava sempre com o pé do ouvido atrás das portas de sua casa e dos avôs.

─ Juju!

─ Fala, Juli.

─ Jujuuuuuuuuuu!!!!

─ Menina, para com isso. Diz o que você quer dizer duma vez.

─ NÓS SOMOS IRMÃS!!!

─ Claro que somos - explica Juliana.

─ ....

─ Vivemos uma na casa da outra, sua mãe se considera como minha mãe e a minha mãe considera você como filha dela. Entendeu?

─ Jujuzinha do meu coração, ‘prest’enção’. Irmãs moram na mesma casa, floooor!

─ Tá me zoando, Julieta??? Que papo é esse??

Antes que Julieta pudesse prosseguir com a sua teoria, o pai de Juliana passa com o carro avisando que a quer em casa dentro no máximo 5 minutos. Como a menina sempre fora obediente, pediu ao pai que parasse o carro, pois aproveitaria a carona. Juliana ofereceu carona à amiga, que recusou.

─ Não somos irmãs, você não é obrigada a me dar carona. Pode ir com teu papaizinho. Vou pra casa caminhando.

─ Poxa, Juli, não tô entendendo essa agora...

Julieta se levanta em sai para o caminho aposto. Precisava colocar as idéias em ordem. Não entendia porque a amiga de anos, a melhor amiga, tinha um pai tão presente e ela não. Sentia um pouco de inveja. Ela só queria se sentir parte de uma família. Uma família que fosse completa.

Após a caminhada, chegou em casa por volta das 19hs. Rita, sua mãe, dificilmente determinava hora para que a filha voltasse para casa. Sabia que tinha criado uma garota ajuizada, que falava pelos cotovelos, porém ajuizada. Julieta nasceu quando Rita ainda estava no Ensino Médio. Deveria ter por volta dos 16 ou 17 anos. Jamais pensara em abortar. Desde o primeiro dia em que soube da gravidez, dizia que teria o bebê mais lindo e falante do mundo.

Logo que Rita se mudou para Campinas, conheceu Vera. Vera era a mão de Juliana e vivia com seu namorado, Lamartine, quando a menina nasceu. O casal se amava, apesar das freqüentes brigas ocasionadas pelo ciúme doentio de Vera. Rita se mudara para a cidade paulista por conta do trabalho de pai, que exigia constantes viagens.

─ Mãe, você acha que eu e a Juju somos parecidas? – questiona Julieta.

─ Parecidas no quê, filha?

─ No nariz e nos olhos. Só que o cabelo dela é liso e o meu cacheado. Aliás...

─ Aliás, a senhorita tem que estudar para prova de biologia. Já pro quarto!

Julieta resolveu então desabafar no seu diário.

“Querido diário, só você me entende. Eu só queria ter um pai. Esses dias eu ouvi a vó dizendo que não agüentava mais guardar um segredo e que logo, logo ia me levar para conhecer Porto Alegre. O pai da Jujuba é gremista. Certo que deve ter alguma coisa a ver. Só não sei por que ela quer me levar para o Rio Grande do Sul se o cara ta aqui. É nosso vizinho!!!!!”

Após o desabafo, a menina começa a estudar para a prova mais importante. Precisava tirar uma boa nota para que a mãe não a cobrasse tanto. De repente, ouve um barulho de discussão vindo da sala. Resolve ir até lá e vê Vera chorando aos prantos.

─ Dona Vera, aconteceu alguma coisa com a Ju? – questiona Julieta.

─ Ai, querida, volta pro teu quarto. Isso é conversa de adulto.

─ Mas Dona Vera...

─ Rita, diz alguma coisa pra essa menina. Ela não tem que ouvir essas safadezas.

─ Filha, por favor... – diz Rita.

Julieta volta para o quarto e deixa a porta entreaberta.

─ Ai, Rita, eu sabia que ele era um cachorro. Já tinham me avisado que ele não era boa coisa. – desabafa Vera.

─ Tá, mas o Lamartine é um homem tão bom. Super dedicado à menina.

─ O Lamartine é ótimo!

─ ...

─ É o pai verdadeiro da Juliana, Rita! Tá me extorquindo. Quer que eu pague uma pensão pra ele. Eu agüento isso?? Se eu não pagar, disso que vai tentar tirar ela de mim.

─ Mas quem é esse infame?

─ Lembra que fui passar umas férias lá na sua cidade?

─ Lembro sim. Não me diga que...que..que...o safado é de lá?

─ ...

─ Mas tu também hein? E o Lamartine já sabe disso?

─ Nem sonha. Fui de férias só com as meninas. Aconteceu. Apaixonei-me, me deixei envolver pelo cretino. Quando voltei e fiquei sabendo que estava grávida, o Lamartine já escolheu o nome e ainda cantava aquela música...aquela...Jou Jou Balangandans. Sempre que a Ju tá triste, ele começa a cantarolar. Desde criança. Sempre foi assim.

A filha de Rita, muito esperta, encontrou a peça que faltava para fechar seu quebra-cabeça. A avó falara em Porto Alegre e a mãe de sua melhor amiga também. Ficara tão feliz com a descoberta que se desconcentrou e perdeu o fim da conversa. Só se deu conta quando Rita fechou a porta e a chamou na sala.

Rita chorava e tremia muito.

─ Julieta!

─ Mãe, que foi?

─ Nessa semana de provas, vais ficar na casa dos teus avôs.

─ Por quê?

─ Guria, não discute! NÃO DISCUTE. Vai arrumar tuas coisas. Eu vou viajar. Na ida pro aeroporto, te deixo na casa do pai e da mãe.

─ Mas, mãe...

─ Juli, tu sempre me obedeceste. Não vai dificultar agora.

Na chegada a Porto Alegre, Rita segue do aeroporto direto ao hotel. Lá, procurava de todas as formas onde poderia estar morando Daniel. Sabia que ele não tinha saído da cidade, mas não fazia idéia de que bairro ele estaria. Depois de tantos anos, encontrou seu perfil numa rede de relacionamentos da internet. Não se surpreendeu ao ver que ele continua morando na casa dos pais.

Rita alugara um carro para se locomover com mais facilidade. Foi até a zona sul da cidade, onde se conheceram e que Daniel morava. Lembrava direitinho do caminho. A cidade tinha mudado muito naquela região. Supermercado e até shopping novo. Seguiu o carro recordando que havia sido feliz naquele lugar. Sentia saudade do pôr-do-sol do Guaíba. Sentia saudade de ir aos jogos no Beira-Rio. Sentia saudade até do Fogaça.

─ Quem é?

─ Daniel, sou eu, a Rita. Abre a porta.

─ Rita?! O que tu tá fazendo aqui? – indagou Daniel.

─ Me deixa entrar. Tenho um assunto importante pra tratar contigo.

Rita contou-lhe sobre a filha. Disse que a mudança para Campinas fora tão súbita que resolveu omitir a gravidez. Sabia que Daniel era mulherengo e envolvia-se com diferentes pessoas. Mostrou-lhe várias fotos de Juliana e Julieta juntas.

─ Tu pariu umas gurias tão belas.

─ Idiota, a da direita é a Julieta, a MINHA filha.

─ E a outra?

─ A outra é a Juliana, filha da Vera.

─ Co-nhe-ce a Ve-ra? – guaguejou Daniel.

─ Tu ainda tem alguma dúvida?

─ Trouxe as fotos das gurias pra tu ver e se contentar com isso.

─ Quer dizer então que eu tenho duas filhotas? – disse Daniel com os olhos lacrimejantes.

─ Tu tens é duas...duas...duas sei lá o quê. Tu não tens nada. Não filha nenhuma e nem caráter. Vou te mandar um dinheiro pra tu parar de incomodar. As gurias tão muito bem sem ti!

Dias depois, toca o telefone na casa de Rita.

─ Alô! – atende Julieta.

─ A Rita está? – diz a voz.

─ Está sim. – responde Julieta, enquanto chama a mãe.

─ Alô, quem está falando? – pergunta Rita.

─ Olha só, não precisa mais me mandar dinheiro. Arranjei um emprego.

Rita começa a chorar de alívio. Julieta se aproxima da mãe e diz que ela é a melhor mãe do mundo. A menina dá um abraço tão apertado, que as lágrimas agora passam a ser de felicidade. Julieta dá mais um beijo na mão e diz que vai ser arrumar para passar na casa de Juliana.

─ Dona Vera, a Jujuba tá em casa?

─ Ta sim, vai entrando.

─ Juuuuuuujuuuuuuu!!!! – exclama Julieta ao ver a amiga.

─ Qual o motivo de tanta felicidade?

─ Porque você é minha irmã...

Vera esbugalha os olhos ao ouvir à frase de Julieta.

─ De novo essa história? – retruca Juliana.

─ ...a irmã que eu escolhi!

─ Isso foi o que eu sempre te falei, garota! Você é a minha Jou Jou Balangandans, que nem o pai diz!

E as duas sobem para o quarto de Juliana, enquanto Vera continuava os afazeres domésticos.

Renata não se sentia bem fazia alguns dias. Nada tinha mais graça. Nada a fazia rir. Nada parecia mais fazer sentido. Levantou-se para mais um dia árduo de trabalho. Sem grande expectativa de que seu dia poderia ser diferente dos outros, arrumou-se como quem vai levar o lixo para a rua.

Chegando ao trabalho, trombou com Augusto:
─ Bom dia!
─ Pra mim não tem nada de bom!

Augusto nem tentar puxar qualquer outro assunto. Apenas admirou-se com o mau humor da colega. Foi a primeira vez que Renata havia lhe dirigido tamanha estupidez.

─ Tu viu a Renata? – perguntou Augusto.
─ Por quê?
─ Fernando...cara...ela ta muito estranho.
─ Estranha de que jeito?
─ Tchê, sei lá. Tu que é tri amigo dela, vai lá ver o que ta acontecendo e depois vem aqui me contar.

Fernando ainda tinha umas pendências do dia anterior para resolver. Não queria para tudo. Sabia que se fosse falar com Renata, eles acabariam brigando. Sua amiga sempre teve o sangue quente e teimosia. A típica capricorniana. Há poucos meses, os dois tiveram um caso e por isso Fernando conhecia bem o gênio da moça.

Além disso, pensou que pudesse ser algo a ver com futebol. Renata amava assistir a todos os campeonatos. Talvez ela tivesse nervosa pelas últimas partidas do Internacional, seu clube do coração. Mesmo assim, o rapaz não conseguia tirar da cabeça a fala de Augusto para que fosse conversar com ela. Pensou, então, em chamá-la para almoçar. Assim eles poderiam se falar com mais calma.

─ Oi, Renata!
─ Fernando, hoje não tô com saco.
─ ...
─ Sério, fala logo. Desembucha. O que tu tá querendo?
─ Só queria te chamar pra almoçar. Por minha conta. Topa?

Depois de um longo suspiro, Renata resolve aceitar. Os restaurantes da redondeza não eram lá muito baratos e essa seria uma forma de economizar.

A manhã parecia se rastejar. Todos na empresa pareciam meio abatidos. As vendas não iam muito bem no primeiro semestre do ano, mas isso não seria motivo para Renata estar daquele jeito tão estranho. Fernando já nem conseguia mais se concentrar nos negócios. Decidiu que por volta das 11h30, desceria até a sala da amiga para que fossem para o intervalo.

De repente, o seu telefone toca.

─ E aí?
─ E aí o quê?
─ Falou com a guria?
─ Cara, me liga depois do almoço. Tenho que terminar umas coisas aqui...
─ Sério, Fernando, fala logo com ela. Hoje acordei com um mau pressentimento!
─ Guto véio, para com essa palhaçada. Já tô nervoso e tu ainda fica me falando essas baboseiras.
─ Não é baboseira. É uma constatação. Tá, vou para de te encher, mas depois não diz que não te avisei.

Fernando não queria admitir, mas estava tão ansioso quanto o colega. Logo que o relógio da sala marcou 11h27, o amigo de Renata desceu as escadas o mais rápido que suas pernas permitiam. Quando chegaram ao restaurante, Fernando tentou quebrar a tensão do momento.

─ Viu, não liga!
─ Não ligar para o quê?
─ O Inter vai ganhar do Corinthians.
─ Sim, e agora além de analista de marketing tu também viraste vidente.
─ Calma!
─ Tô calma.

Renata começa a ter uma crise de choro. Os clientes nas mesas próximas começaram a lançar olhares de condenação a Fernando.

─ Cretino, o que tu fez pra ela? – disse uma velhinha.
─ Porra, não te mete, velha chata! – respondeu Renata.

Os amigos largaram o valor em dinheiro suficiente para pagar a conta e pensaram que dar umas voltas para conversar seria uma boa idéia. Os dois entraram em silêncio no carro de Fernando. Renata colocou um cd do Kleiton & Kledir. Sua música preferida era Paixão. A jovem programou no repeat.

─ Que letra linda! – exclamou Fernando.
─ Demais, não é?
─ Rê?
─ Quê?
─ Me conta o que tá acontecendo...

Renata deu um beijo próximo aos lábios de Fernando. Surpreso, Fernando entrou numa rua deserta e estacionou. Começaram a se beijar carinhosamente. Foram para o banco traseiro do veículo e Renata percebeu a empolgação do amigo. Amaram-se. Amaram-se loucamente. Amaram-se como nunca o tinham feito mesmo quando mantinham um caso secreto, pois era contra as normas da empresa.

Na volta do almoço, cada um foi para sua respectiva sala. Augusto, mais atento à movimentação das pessoas do que aos seus afazeres, vai até a sala do amigo.

─ E aí?
─ De novo, cara. Muda a pergunta, toda vez que tu vem falar comigo é isso agora! VAZA! – esbraveja Fernando.

No dia seguinte, Renata não foi trabalhar. Fernando, naquele dia, passaria todo o expediente tratando negociações com clientes e só foi informado da ausência no happy hour.

─ Putz, tenho que ligar pra Renata!
─ Isso, liga pra gente saber o que aconteceu...
─ Augusto, tu é foda cara, só quer fofocar!

Fernando, ao invés de ligar, decide ir até o apartamento de Renata. Como tinha a chave e ela não atendia à porta, achou que não seria imprudente. Adentrou chamando pela amiga. Ouviu o chuveiro ligado e dirigiu-se ao banheiro. Chamou mais uma vez por Renata. Não obteve resposta alguma.

Assustado, arrombou a porta. Encontrou Renata no chão, sentada e desacordada. Bateu no seu rosto, na tentativa de que recobrasse a consciência. Voltou à sala e chamou uma ambulância. Ao lado do telefone, encontrou um bilhete:

“Não quero ficar na tua vida
Como uma paixão mal resolvida
Dessas que a gente tem ciúme
E se encharca de perfume
Faz que tenta se matar...”

Eu nunca imaginei que um dia isso pudesse acontecer. Não que eu seja uma daquelas pessoas que acha que nunca nada de ruim vai me acontecer. Mas é que um dia eu andava num lugar que achava seguro. Claro que era um espaço que algumas vezes tinha seus desníveis. Simplesmente porque isso é absolutamente normal.


Só que um dia, nesse exato lugar, eu acabei tropicando. Um dos meus lugares favoritos tinha me feito tropicar. Desequilibrei-me de tal forma que uns objetos caíram por cima e levantar a poeira do chão. O mais engraçado é que eu não tinha percebido que ela poeira estava ali. Nos últimos meses, eu passara por ali como se nada diferente tivesse acontecido.


Comecei a espirrar. Mesmo assim, eu insistia em achar que tava tudo e dizia a mim mesma que aquilo não iria me incomodar. Que nada! Virei a noite pensando que eu devia dar um jeito naquele lugar, antes que ele me consumisse. Antes que tudo aquilo virasse uma bagunça muito maior e me afetasse muito mais.

Só que simplesmente eu não conseguia encarar aquela situação. Aqueles objetos caídos, misturados com a poeira e arranhados devido à repentina batida no chão, me fizeram começar a achar aquele lugar não mais tão especial.


“Como foi que apareceu aquele desnível?”. Era só nisso que eu pensava. No princípio, achava que alguém tivesse o colocado de propósito. Porém, eu já não me fazia presente ali há algum tempo. Aquilo deve ter se criado sozinho!


As conseqüências do tropeço? Dor. Muita dor. Tristeza. Chateação. E o irônico é que não era só comigo. Outras pessoas acreditavam na segurança e nas qualidades daquele mesmo lugar. Todos, inclusive eu, começaram a ‘pegar implicância’. Não sei se um dia voltarei a pisar naquele recinto como eu fazia há alguns dias. Vai ser difícil. Os outros diziam o mesmo. Eu vou esperar. Vou esperar se a poeira baixa. Vou esperar para ver se os objetos, mesmo arranhados, vão se ajeitando.


Nada vai ser do mesmo jeito. Nunca volta a ser quando algo é arranhado. Quando alguém é ferido. Quando o sentimento de apreço começa a terminar. É difícil, mas eu tenho outros portos seguros que me prometeram que não irão desnivelar. Pelo menos não de forma tão grave quanto este desnivelou.

Para abrir as postagens com os contos, escolho um que é resultado de uma atividade sugerida em sala de aula pelo meu professor de Escrita Criativa. A tarefa consista no seguinte: a partir de uma sequência de frases, deveríamos criar uma história, juntando todos os "farrapos". A ideia era instigar nossa criatividade a partir de retalhos que aparentemente não poderiam se unir.

Colocarei as frases na ordem sugerida em sala de aula para que vocês também possam se aventurar na brincadeira. (Importante: a ordem não pode ser alterada, senão perde a graça!)

1. Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro.
2. Cedo ela teve uma intuição.
3. O cão revelou-se indigno de sua raça.
4. Acabaram a noite sem muitas surpresas.
5. A TV transmitia o jogo.
6. O presidente da República baixou um decreto criando uma nova condecoração.

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Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu uma suspiro. Sua esposa se aproximou para entender o que acontecia. Cedo ela teve uma intuição. O marido logo pensou que o barulho pudesse ter alguma relação com a mulher sensitiva.

Alberto resolveu, então, abrir vagarosamente a porta principal da casa. Com o estranho ruído da fechadura enferrujada, o cão revelou-se indigno de sua raça. O casal chamou pelo cão diversas vezes e ele continuava encolhido em sua casinha. Assim, acabaram a noite sem muitas supresas.

Entraram novamente dentro da casa. A TV transimitia o jogo. Era o único ruído naquele momento. A mulher lavava a louça. De repente, Alberto dá o mesmo suspiro de antes, na interrupção súbita da partida de futebol: o presidente da República baixou um decreto criando uma nova condecoração.




Foto: Divulgação

O nascimento deste blog tem como objeto colocar no papel algumas histórias que passam pela minha cabeça. O Coberto de Farrapo é uma tentativa de mergulhar na criação literária e experimentar o gostinho de criar e vestir personagens juntando uma peça aqui e outra ali. O nome é inspirado numa frase da canção de Noel Rosa*, 'Com que roupa?'.

Tomara que vocês curtam o que vem por aí e juntem seus farrapos com os meus.

Clique para ver o vídeo da música na voz de Noel e na de Roberta Sá.

*Clique para ler a letra da música.